Tânia Cristina da Silva Cruz [1]
Jonathas Felipe Aires Ferreira [2]
Introdução
A sociedade contemporânea está assentada na lógica do consumo[3]. Este consumo está configurado em uma cadeia produtiva que deteriora os recursos naturais em prol da concentração da renda capitalista e da destruição da sociobiodiversidade. Nos espaços rurais tal dinâmica de esgotamento das reservas naturais e as desigualdades geradas no acesso a recursos financeiros e materiais estão explícitas nas relações entre os integrantes da família de base comunitária e agrícola. Em especial, nos preocupa a condição de centenas de mulheres do campo que estão submetidas a esta dinâmica de extorsão da natureza e a uma precarização intensa de suas condições de vida.
Os enfrentamentos diários para estas famílias de produtoras, produtores e assentadas e assentados rurais (que hoje totalizam cerca de 4,4 milhões de unidades produtivas, com aproximadamente 13,8 milhões de pessoas que trabalham em seus estabelecimentos agro-familiares)[4] está no correto e contínuo escoamento da produção, nos desafios às adversidades ambientais, no acesso a crédito e apoio técnico contínuo, no estabelecimento de redes de apoio e comunicação, na manutenção de equipamentos e sobretudo, no acesso a recursos básicos como água/irrigação e insumos para plantio. Tudo isto se constitui como entraves para a continuidade da agricultura familiar e para a qualidade de vida e saúde das pessoas que vivem da terra e que produzem 70% do que vai para os pratos dos brasileiros (Censo Agropecuário, 2006).
Uma alternativa a este modelo está na leitura da agroecologia como um instrumento e uma metodologia de tecnologia social [5]possível de ser usada no âmbito de arranjos econômicos solidários[6] de modo que se possa emponderar as mulheres e as famílias do campo na criação de novos olhares e no enfrentamento à questionamentos frente ao sistema hegemônico que prega a destruição de espécies (com foco na produção maciça) e na perpetuação sistêmica do patriarcado econômico, político e social que preconiza o poder decisório do homem sobre a mulher e, ainda, intenta controlar as ações produtivas e reprodutivas “das companheiras de luta ou coordenadoras de panelas[7] (ABRAMOVAY; RUA, 2000).
A agroecologia, aliada à agricultura familiar de base solidária, se propõe a fazer um resgate de uma produção sustentável com valorização dos conhecimentos locais, uma vez que se envolve com pautas econômicas, sociais e ambientais que dialogam com diversidade e a memória dos povos rurais: é a luta e reflexão contra a dependência de insumos bioquímicos, defesa pelo uso sustentável da sociobiodiversidade e o enfrentamento ao sistema patriarcal[8]. Pensar em práticas de economia solidária no campo, a partir de técnicas agroecológicas e com metodologias inclusivas da tecnologia social pode proporcionar para aquelas e aqueles (que dependem diretamente da terra para sobreviver) autonomia na área da soberania alimentar e o uso correto e equilibrado do empoderamento produtivo. Dito de outro modo: o paradigma agroecológico coloca a produtora e o produtor rural como detentor de todos os seus meios produtivos, lhe permitindo utilizar tudo que está disponível nos espaços rurais para atingir uma colheita adequada às suas necessidades e do mercado local que esta agricultora e agricultor habita e atua. Todos os avanços artificiais da revolução verde passam a ser irrelevantes, pois desencadeiam uma dependência e degradação da matriz produtiva. Daí a ênfase deste artigo em defendermos a organização cooperada e solidária das forças produtivas do campo com suporte na tecnologia social e com visibilidade para o trabalho das mulheres camponesas.
Gênero e Responsabilidades desiguais
As mulheres da agricultura familiar são as reprodutoras dos costumes e práticas que permitem a continuidade do núcleo familiar da família rural brasileira baseada na subsistência e criação das gerações posteriores. A estas cabem os afazeres tradicionalmente domésticos e o uso da sua força de trabalho na propriedade familiar voltada para uma produção:
(…) nessa esfera as mulheres têm autonomia e poder, tomando decisões relativas ao preparo dos alimentos, cuidado da casa e da roupa, orientação e educação dos filhos, assim como ao uso de recursos destinados ao consumo doméstico (BRUMER, 2004:212)
Tradicionalmente passam, lavam, cozinham, cuidam das crianças e da sua educação e através da oralidade transmitem e reproduzem os modelos em que foram criadas. Do ponto de vista do acesso aos recursos, insumos e crédito geralmente participam inexpressivamente e não delegam tarefas administrativas na produção e muito menos na gestão da terra.
A carga elevada de afazeres não é reconhecida e sim vista como uma “ajuda”. Com a subalternização do seu trabalho, as mulheres rurais enfrentam a invisibilidade das suas atividades assim como a redução da valorização do seu trabalho.
As atividades realizadas pela mulher agricultora tanto no espaço produtivo (roça) como no reprodutivo (doméstico) não se caracterizam como trabalho. No âmbito do doméstico as atividades realizadas pela mulher não consubstanciam trabalho porque não geram renda, enquanto na agricultura o que descaracteriza é o número menor de horas dedicadas às atividades, em relação ao total de horas dadas pelo homem. A menor dedicação da mulher aos afazeres da roça se explica porque sendo o tempo um fator limitado, o tempo dela é em grande parte absorvido pelo serviço doméstico. Tal realidade reflete a divisão sexual do trabalho vigente na região que tem como base o sistema patriarcal (MELO, 2006:04).
Por causa de um sistema hegemônico patriarcal que as oprime, geralmente estão relegadas aos espaços privados, às atividades domésticas. Por muito tempo em que estiveram presas a estas atribuições, isso as cerceou em sua liberdade para ocupar lugares públicos e dar vazão as suas pautas e demandas específicas. Essas relações desiguais que se perpetuam no meio rural brasileiro afetam as mulheres das mais diversas maneiras como historicamente ocorria no acesso à terra:
Nos primeiros acampamentos dos anos 80, os homens solteiros podiam ser cadastrados pelo Incra para receberem um lote, no momento da desapropriação de terras. Direito que não estava posto para as mulheres solteiras. Além disso, quando uma família era assentada, o lote ficava apenas no nome do homem (SCHWENDLER, 2009:209).
Esta assimetria no acesso à terra e seus recursos também era evidente no alcance às políticas públicas por parte das mulheres do campo:
A mulher trabalhadora do campo era vista como “do lar”, não era reconhecida como trabalhadora rural, não tinha direito à aposentadoria e ao salário-maternidade, não era sindicalizada e seu nome não contava no bloco de produtor. Somente com a Constituição Federal de 1988, como resultado da pressão e organização do movimento de mulheres rurais e das lideranças femininas dos sindicatos, articulados com o Conselho Nacional de Direitos da Mulher, criado pelo Ministério da Justiça em 1985, os direitos das mulheres foram expandidos em relação à legislação do trabalho, aos benefícios de previdência social, à inclusão de mulheres na reforma agrária (SCHWENDLER, 2009:209).
A chamada desigualdade de gênero afeta e condiciona as relações sociais entre homens e mulheres nos espaços produtivos, reprodutivos, religiosos, comunitários… O conceito de gênero, surgido no interior da teoria feminista, se constituiu como um instrumento de análise e luta para romper com uma visão que naturaliza as relações estabelecidas entre os distintos sexos a partir de explicações de natureza biológica, nas quais as diferenças são usadas para justificar atitudes desiguais e opressoras nas relações entre mulheres e homens (SCHWENDLER, 2009).
O ser homem e ser mulher na sociedade é percebido de várias maneiras, ou seja, o processo de educação em que somos submetidos ao longo da nossa infância e adolescência nos molda assim como os papéis sociais que desempenharemos como homem ou mulher. Essa relação se dá entre o sexo masculino e feminino, a partir de uma perspectiva hierarquizada: uma relação de poder do homem sobre a mulher em diversos espaços e situações. E no campo tal assimetria ou assimetrias são mais evidentes ainda: no acesso à posse de bens, na tomada de decisões, na composição de arenas de representatividade política, na divisão das tarefas familiares e domésticas, no usufruto da renda gerada pelas parcelas produtivas, no cuidado com a saúde reprodutiva das mulheres (sempre muito precário), na ausência de políticas específicas sobre o trato da violência doméstica e sexual às mulheres e crianças camponesas, etc.
As mulheres do campo também são sujeitas de direitos: o Movimento das Mulheres do Campo – MMC, a agroecologia e a luta pela vida na terra com emancipação para as camponesas.
O modelo estabelecido pela Revolução Verde[9] dispensa os conhecimentos locais, a produção modesta e a pequena propriedade. Concentra o saber cientifico e financeiro em corporações internacionais através de organismos geneticamente modificados (OGM) e insumos. Aquela/aquele que não possui o pacote de tecnologias necessária para esse modelo produtivo é excluído do campo, é desassociado da sua identidade cultural vinculada à terra.
Fruto desse descontentamento e com a forma de uso da terra excludente e predatório, um grupo de mulheres no início dos anos 1980 criaram o Movimento das Mulheres Camponesas (MMC) que objetivam a luta contra o sistema hegemônico no campo:
A nova realidade exigia o uso de novos insumos e novas técnicas orientadas para atender as necessidades de mercado deixando o pequeno produtor dependente de empréstimos bancários e das exigências das indústrias locais. Enquanto a região fortaleceu-se como polo agroindustrial, a perda da autonomia no processo de produção determinou uma crise no modo de produção agrícola tradicional. A realidade do período histórico na região, ao mesmo tempo em que possibilitou uma forte atuação das pastorais da igreja na conscientização de homens e mulheres sobre os papéis a serem desenvolvidos não só na esfera doméstica, mas na sociedade. Isto propiciou que na região surgissem intensos movimentos sociais e sindicais, estando entre eles o Movimento das Mulheres Agricultoras (MMA) (ADÃO, 2011:176).
O MMC nasceu de uma realidade em que as mulheres do campo não estavam contempladas por serviços relativos à saúde, previdência social, aposentadoria:
(…) as questões principais que estão na origem dos movimentos de mulheres trabalhadoras rurais são principalmente o reconhecimento da profissão de agricultora (e não como doméstica, visando quebrar a invisibilidade produtiva do trabalho da mulher na agricultura); a luta por direitos sociais, especialmente o direito à aposentadoria e salário maternidade; e o direito à sindicalização; questões relacionadas com a saúde da mulher. Aparece também o tema do acesso à terra, com as mulheres encampando a bandeira da Reforma Agrária e a ela incorporando reivindicações específicas de gênero, como titulação da terra em nome do casal (conjunta com marido e/ou companheiro) ou em nome da mulher chefe de família, direito das mulheres solteiras ou chefes de família a serem beneficiárias da reforma agrária. (…). (HEREDIA, 2006:7).
Esse movimento rural parte do pressuposto que a mulher é um sujeito de direitos[10] e questiona o sistema patriarcal que as impede de ter direito sobre si, de vivenciar a sua sexualidade, de lutar por trabalho, acesso à terra e políticas públicas direcionadas para as mulheres do campo.
A partir das bandeiras de igualdade de gênero, questionamento do sistema produtivo estabelecido no campo, luta pela terra, soberania alimentar e agroecologia, essas mulheres propõem um novo modelo crítico para a sociedade do campo a partir de um escopo marxista e de bases igualitárias ambientais:
(…) uma organização da sociedade civil, sem fins lucrativos, formada por mulheres trabalhadoras rurais. Caracteriza-se como um movimento social popular, de caráter autônomo, democrático, feminista e de massas. Luta pela mudança nas relações de opressão e discriminação entre homens e mulheres e pela transformação da sociedade capitalista, visando à construção de uma nova sociedade, que resgate o valor humano, as relações entre as pessoas e com a natureza, numa perspectiva socialista e democrática. Este movimento foi se organizando e se constituindo a partir de sua inserção no processo mais amplo da luta popular (de classe) e feminista (de gênero) no Brasil, onde as mulheres sempre estiveram presentes na construção da história da humanidade e nas lutas por justiça, desde os tempos mais remotos até nossos dias (OLIVEIRA, 2009:388).
A educação transformadora e crítica é a base do MMC. Através dela é possível esclarecer para as mulheres que dela participam o quanto o sistema tradicional as subalterniza assim como intensifica as desigualdades de gênero, então
(…) quando as mulheres começam a participar de organizações de base, pela sua ação coletiva, vão se dando conta da realidade em que vivem e do contexto histórico que a produziu. Então, sua prática social se converterá em uma prática transformadora, que desafiará novamente as organizações, os dirigentes, os intelectuais orgânicos a formular teoricamente elementos necessários para as exigências postas pela práxis, na correlação de forças da luta hegemônica travada dentro dos espaços da sociedade civil e política. Esse processo de saber interpretar e transformar a realidade de forma consciente e coerente é fonte de poder, sendo a práxis, portanto, a condição indispensável para se construir sujeitos individuais e coletivos, construtores do poder libertador e emancipador das classes populares e das mulheres (OLIVEIRA, 2009:394).
Organizações sociais como o MMC são fundamentais em um contexto rural de luta pela dignidade humana e ao acesso à terra. Esses movimentos organizados proporcionam a sistematização de ideias e reflexões de um novo modelo inclusivo e igualitário para com os usos da terra e no acesso às políticas públicas eficientes voltadas para o setor rural.
Inovação agroecológica e as mulheres camponesas: organizar solidariamente para a sustentabilidade rural. Breve relato das Mulheres do Assentamento Pequeno Willian/DF.
Agroecologia é uma agricultura menos agressiva ao meio ambiente, que promove a inclusão social e proporciona melhores condições econômicas para as agricultoras e agricultores de nossa sociedade. Não apenas isso, mas também temos vinculado a Agroecologia à oferta de produtos “limpos”, ecológicos, isentos de resíduos químicos, em oposição àqueles característicos da Revolução Verde. Aqui fica claro o aporte da agroecologia à tecnologia social, uma vez que a agroecologia nos traz a ideia e a expectativa de uma nova agricultura, capaz de fazer bem as mulheres e homens e ao meio ambiente como um todo, afastando-nos da orientação dominante de uma agricultura intensiva em capital, energia e recursos naturais não renováveis, agressiva ao meio ambiente, excludente do ponto de vista social e causadora de dependência econômica (CAPORAL, 2002).
Como novo paradigma que se propõe a questionar as bases estabelecidas, a agroecologia não se restringe apenas aos aspectos de produção, mas também aos aspectos sociais, econômicos, ambientais e também as questões de gênero. Nesse sentido, um dos pressupostos deste artigo é que as mulheres são responsáveis pela perpetuação dos conhecimentos tradicionais da sua comunidade. A junção das pautas femininas em conjunto com as da agroecologia e da tecnologia social se constituem como oportunidade de reflexão e de luta para um novo modelo que engloba novos olhares e perspectivas para o campo.
Nesse sentido, vários grupos de mulheres têm acumulado recursos potenciais para a disseminação de práticas agroecológicas, somadas às reflexões de gênero na sociedade e no campo da atividade agrícola. Suas participantes geram assim um espaço potencial, contribuindo para o fortalecimento da agricultura ecológica enquanto processo “enredado” por diferentes fios (HENN, 2013).
Um exemplo de novas alternativas rurais comunitárias está em alguns núcleos de assentadas e assentados que circundam a cidade-satélite de Planaltina/DF, como o assentamento Pequeno William e o Márcia Cordeiro Leite, organizados por mulheres em uma lógica agroecológica. Para essas agricultoras, a agroecologia é a oportunidade de exercer a soberania alimentar dentro da sua realidade e produzir aquilo que necessitam, sem haver a necessidade de se tornarem reféns de corporações e sem dependerem de produtos agroquímicos.
Isso para o movimento de mulheres significa que
(…) a participação das mulheres constitui, na agroecologia, a possibilidade do redimensionamento dos espaços nos quais elas circulam ou das relações em que elas se engajam. Ao mesmo tempo, o reconhecimento do campo agroecológico contribui para a transformação das condições e de posições de ambos, mulheres e homens, e das interações e formas de sociabilidade, a exemplo das questões de gênero, de geração e de produção, entre outras (HENN, 2013:86).
A invisibilidade do papel da mulher perpassa as questões econômicas, política social e cultural; portanto a abordagem transversal e multidisciplinar que o corpo teórico da agroecologia reivindica, na leitura dos agro-ecossistemas e da inovação agroecológica[11], deve também estar presente nos estudos das relações de gênero. Não se trata de uma proposta apenas para a agricultura: inclui a proposta de uma “sociedade sustentável” em que muitas outras questões – como por exemplo, o papel do mercado, do consumo responsável, da produção de conhecimento – também deverão ser redefinidas (SILLIPRANDI, 2006). A conservação da biodiversidade, a redução da mecanização, as lutas sociais por equidade e oportunidade, a soberania e segurança alimentar, a inclusão social e equidade de gênero são uma das bandeiras dos movimentos que lutam pelo acesso à terra que estão alinhados com uma agricultura ecológica e com bases de tecnologia social e solidária.
Outra questão importante, que se sobressai nos estudos em relação a participação das mulheres na inovação agroecológica é a crítica à concepção de que trabalhando com a família contempla-se as lacunas das necessidades das mulheres. Ou seja,
(…) deve-se desnaturalizar a noção de que trabalhar com a família é igual a trabalhar com todos os seus membros. Torna-se importante considerar as relações desiguais de poder dentro da família e verificar sempre de que forma as dinâmicas de inovação agroecológicas contribuirão ou não para o empoderamento das mulheres (FERREIRA, 2009:23).
Observa-se que muitos avanços já foram alcançados, se formos rever o histórico de construção da agroecologia no Brasil. SILIPRANDI (2009), em sua tese de doutorado, faz esse resgate histórico dos Encontros Brasileiros de Agricultura Alternativa – EBAAs. Estes eram organizados pela Federação das Associações dos Engenheiros Agrônomos do Brasil – FAEAB, pelas federações estaduais e pela Federação dos Estudantes de Agronomia- FEAB na década de 80. Segundo a mesma autora, consta, nos anais do II Encontro Brasileiro de Agricultura Alternativa, a participação de 08 mulheres como palestrantes, no 3º encontro uma mulher (chamada Regina Toledo) e nos 17 cursos ministrados apenas 02 mulheres como professoras. Ela acrescenta que em 1989, em um folheto produzido para o XXXIII Congresso dos Estudantes de Agronomia aparece reivindicações especificas das mulheres, que apareceram no IV EBAA: propunha-se o reconhecimento da mulher do campo como trabalhadora em mesmo nível que os homens; lutas contra toda forma de exploração e subordinação sofrida pelas as mulheres; a necessidade de se discutirem as questões da saúde da mulher causada pelo uso de agrotóxico e o repudio ao controle de natalidade do governo Federal José Sarney na década de 80.
Observa-se que a primeira pauta feminina no movimento agroecológico ainda estava centrada na visão das mulheres do meio acadêmico, estudantes e professores. Os movimentos de mulheres do campo ainda não participavam ativamente da formulação de agendas de ação coletiva, apesar de as pautas estarem encadeadas no movimento de mulheres na busca por seus direitos sociais, previdenciários e sindicais e isso as permitiria participar do sindicato para ter direito a aposentadoria e outros.
O processo de socialização e inserção das mulheres camponesas no movimento agroecológico, não foi conseguido pela benesse dos homens. Elas tiveram que se articular local e regionalmente para que tivessem sua participação política respeitada e representada além do acolhimento de suas demandas.
SILIPRANDI (2009) esclarece que foi no I Encontro do ENA (Encontro Nacional de Agroecologia) em 2002, no Rio de Janeiro, que as mulheres camponesas conseguiram pautar suas demandas, graças a articulação de lideranças dos movimentos de mulheres com assessoria da SOF (Sempre Viva organização Feminista) juntamente com a Rede PTA (Rede de Agricultura Familiar Agroecológica). Houve um questionamento da limitação do espaço que vinha sendo ocupado pelas mulheres. Em resposta a este questionamento foi criado em 2004 o GT – Mulheres da ANA (Associação Nacional Agroecológica). Seu objetivo era dar visibilidade à participação das mulheres na construção do movimento agroecológico. A partir da proposta do GT a coordenação da ANA, garantiu a cota de 50% de mulheres delegadas: foram alcançadas 46% no II encontro, número bem maior do que o I encontro que contou com 30% de quórum feminino (um feito inédito nos movimentos do campo prioritariamente masculino). Além de alcançar a visibilidade, as mulheres conseguiram que a Carta Política do II ENA pautasse os interesses das mulheres do campo.
No Distrito Federal, o Assentamento Pequeno Willian é o resultado da luta pela reforma agrária desenvolvida por trabalhadores e trabalhadoras rurais organizadas no MST/DF (Movimento dos Sem Terra). Atualmente conta com 22 famílias. A primeira ocupação ocorreu na fazenda Toca da Raposa, localizada em Planaltina DF no período de janeiro de 2005 a 12 de outubro de 2010. Neste período de quase 6 anos o assentamento chegou a 100 famílias.
A partir da portaria 136/11 de 26/12/2011 foi criado oficialmente o Parcelamento Agrário Pequeno William, imóvel rural denominado Fazenda Sálvia, localizado a 10 KM da cidade de planaltina. A área registrada é de 144,17 Ha. sendo a reserva legal de 60,73 Ha. Atualmente as famílias do Pequeno William se organizam e se fazem representar pela Associação Esperança que tem sido o instrumento jurídico constituído coletivamente. O objetivo do assentamento é produzir a partir da implantação de sistemas socioprodutivos integrados, de base agroecológica, na perspectiva de superar deficiências estruturais básicas, emancipando as assentadas da condição de pobreza, dinamizando a inclusão nos mercados locais e a integração social.
Todas as mulheres entrevistas tem em seu nome a posse da terra; estão assentadas e com acesso ao PRONAF[12]. No atual grupo de 22 famílias, todas as mulheres receberam capacitação em agroecologia através de diversas entidades. O Instituto Federal de Brasília e a Universidade de Brasília (Campus Planaltina) desenvolvem pesquisas no assentamento. A Embrapa, a Emater e a Secretaria de Agricultura do Distrito Federal têm dado suporte técnico em tecnologias sociais para o desenvolvimento do assentamento e para a melhoria da produção agroecológica. O assentamento faz parte de uma política do próprio MST em desenvolver a agroecologia como um sistema alternativo de produção.
É no trabalho feminino que percebemos a valorização e preocupação com o sentido do trabalho, com o compromisso com a coletividade, com a solidariedade através da partilha. Na Economia capitalista formal, é o homem quem organiza a produção e gere seu desenvolvimento no cotidiano, toma as decisões gerenciais, comercializa e decide o que fazer com eventuais ganhos ou como agir para minorar perdas, assim como para viabilizar outras possíveis fontes de rendas, inclusive externas à agropecuária. É, via de regra, o homem quem coordena e distribui – a partir de práticas costumeiras, entre os familiares que vivem no lote, tanto adultos como crianças – as diferentes atividades: plantio, tratos agrícolas, colheita, cuidado dos animais, administração e planejamento, a definição da finalidade dos itens da produção de seu lote (mercado e/ou consumo), os contatos com bancos, cooperativas, técnicos etc.
Este modelo centralizador não se aplica ao assentamento agroecológico Pequeno William. A reprodução deste modelo foi combatida deste o início das ocupações e nas primeiras reuniões de organização do assentamento debates fervorosos sobre a divisão do trabalho foram feitos. A proposta sempre foi a agroecologia, o compartilhamento dos bens da Associação Esperança e o papel decisivo da mulher que neste modelo é líder, com direito à posse da terra e que opta ou não por ter um companheiro.
A liderança é feminina e isto contribuiu para que se instalasse um modelo de convívio e trabalho diferencial: “aqui todo mundo cuida de todo mundo” diz Valdira, que vive no assentamento com seis filhos, um companheiro e produz artesanato. Ela coordena a produção familiar e procura novas formas de comercialização em feiras, no porta-a-porta ou aos visitantes que periodicamente estão no assentamento. Isto nos faz pensar que “a ponte” entre a economia solidária, a tecnologia social e a agroecologia é justamente integrar a comunidade em torno da noção de sustentabilidade e equidade no acesso aos recursos do campo.
Evidentemente que para que tivéssemos uma sociedade em que predominasse a igualdade entre todos os seus membros, seria preciso que a economia fosse solidária em vez de competitiva. Isto significa que os participantes na atividade econômica deveriam cooperar entre si em vez de competir. O território[13], neste contexto, aparece como um espaço no qual os sujeitos vivem e querem permanecer. E aqui, o território em questão é o Assentamento Pequeno Willian/DF. A solidariedade neste grupo só foi possível uma vez que as mulheres se organizaram igualitariamente para produzir, comercializar, consumir e poupar. A chave da proposta, como nos lembra o professor Singer (2009) é a associação entre iguais em vez do contrato entre desiguais.
No Distrito Federal não há muitas experiências de vulto significativo, embora arranjos sociais venham se consolidando ao longo do tempo a fim de fortalecer uma rede de produção e comercialização de produtos e serviços com o auxílio de tecnologias sociais e a partir do paradigma agroecológico. Os produtos que o assentamento Pequeno Willian produz são construídos através das ferramentas de economia solidária. E isto já é resultado de uma ação de apoio da Universidade de Brasília com a Emater/DF: as mulheres foram encubadas em 2011 e o artesanato sofreu um grande salto em qualidade, ganhou marca e características de mercado solidário, sendo hoje uma das principais alternativas de renda das assentadas. Além disso, houve uma melhora significativa na capacidade produtiva delas: a horta comunitária funciona e ainda permite que a sobra seja comercializada.
Considerações Finais
Em linhas gerais, o objetivo principal deste artigo foi frisar que a discussão pautada na relação economia solidária/tecnologias sociais/relações de gênero se deu: a) pela reconhecida importância do trabalho produtivo e reprodutivo realizado pelas mulheres nos sistemas agroalimentares e a premente emancipação das mesmas; b) pela sua relevância para a segurança alimentar e nutricional de base agroecológica das famílias e comunidades rurais; c) pela autonomização das ações e visibilidade das necessidades dos diversos grupos de mulheres camponesas; d) para o desenvolvimento da agroecologia, uma vez que a posição social que as mulheres ocupam propicia um olhar sensível às questões latentes no cerne da inovação agroecológica e e) pela urgência em emponderar vários grupos de mulheres do campo bem como por um esforço teórico, empírico e político de combater a naturalização desta posição social atribuída às mulheres. Como já muito bem realçado pelas teorias feministas e pelo movimento de mulheres em todo o mundo, tal “olhar” sob a condição feminina é produto de relações sociais de sexo construídas entre mulheres e homens em uma sociedade patriarcal e capitalista.
Para essa reflexão foi necessário considerar que tarefas de trabalho produtivo e reprodutivo são realizados em espaços e tempos algumas vezes muito próximos, senão os mesmos. Estes guardam uma relação bastante íntima que não deve ser ignorada. Por fim, avalia-se a importância da inovação agroecológica para a vida das mulheres camponesas, ou seja, é notório que os processos de transição agroecológica de base solidária têm sido capazes de proporcionar empoderamento e fortalecer a autonomia das mulheres envolvidas. Ou seja, são processos que podem garantir além da emancipação de vários grupos femininos a sustentabilidade da vida rural. As sujeitas de direitos são também as protagonistas de um mundo rural mais equilibrado e agroecologicamente mais justo.
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NOTAS
[1] Professora Adjunto da Faculdade UnB Planaltina (FUP/UnB); Coordenadora do curso de Graduação de Gestão Ambiental da FUP/UnB; Coordenadora do Laboratório de Pesquisa em Ciências Sociais, Métodos Qualitativos e Mobilização Social (LaPCIS/UnB); Membro do Centro de Estudos da Chapada dos Veadeiros (Centro UnB Cerrado/GO), Membro do Programa de Mestrado em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural Sustentável (MADER) e Coordenadora do Núcleo de Desenvolvimento Territorial e da Cidadania da Chapada dos Veadeiros (TCCV).
[2] Mestrando em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural pela Faculdade de Planaltina – UnB.
[3] Sociedade de consumo é um termo utilizado para designar o tipo de sociedade que se encontra numa avançada etapa de desenvolvimento industrial capitalista e que se caracteriza pelo consumo massivo de bens e serviços disponíveis, graças a elevada produção dos mesmos (BAUMAN, 2008). As relações entre consumo e a sociedade existem há muito tempo. Mas na pós-modernidade, com o desenvolvimento da cultura do consumo esta relação assume um novo contexto estruturado na fluidez, no líquido, como propõe Bauman (2008). Em sua obra “Vida para Consumo” Bauman descreve de forma direta e consistente passagem da sociedade dos produtores para sociedade de consumo e os impactos da pós-modernidade no consumo.
[4] Isto corresponde a 77% da população ocupada nos campos da agricultura brasileira (Censo Agropecuário, 2006. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/. Acesso: 10 fev. 2016).
[5] Tecnologia Social compreende produtos, técnicas ou metodologias reaplicáveis, desenvolvidas na interação com a comunidade e que representem efetivas soluções de transformação social. São processos criados para solucionar algum tipo de problema social/comunitário e que atenda aos quesitos de simplicidade, baixo custo, fácil aplicabilidade (e reaplicabilidade) e impacto social comprovado. É um conceito contemporâneo que remete a uma proposta inovadora de desenvolvimento (econômico ou social), baseada na disseminação de soluções para problemas essenciais como: demandas por água potável, alimentação, educação, energia, habitação, renda, saúde, meio ambiente, entre outras. As tecnologias sociais podem originar-se quer no seio de uma comunidade quer no ambiente acadêmico. Podem ainda aliar os saberes populares e os conhecimentos técnico-científicos. Importa, essencialmente, que a sua eficácia possa ser alcançada ou repetida por outras pessoas, permitindo que o desenvolvimento se multiplique entre as populações atendidas, melhorando a sua qualidade de vida (DAGNINO, 2009).
[6] Economia solidária é definida como o “conjunto de atividades econômicas – de produção, distribuição, consumo, poupança e crédito – organizadas sob a forma de autogestão.” Compreende uma variedade de práticas econômicas e sociais organizadas sob a forma de cooperativas, associações, clubes de troca, empresas autogestionárias, redes de cooperação, entre outras, que realizam atividades de produção de bens, prestação de serviços, finanças solidárias, trocas, comércio justo e consumo solidário. Trata-se de uma forma de organização da produção, consumo e distribuição de riqueza centrada na valorização do ser humano e não do capital, caracterizada pela igualdade. A economia solidária é uma alternativa inovadora na geração de trabalho e na inclusão social, na forma de uma corrente do bem que integra quem produz, quem vende, quem troca e quem compra. Seus princípios são autogestão, democracia, solidariedade, cooperação, respeito à natureza, comércio justo e consumo solidário. Preconiza o entendimento do trabalho como um meio de emancipação humana dentro de um processo de democratização econômica, criando uma alternativa à dimensão alienante e assalariada das relações de trabalho capitalistas (SINGER, 1999; GAIGER, 2002 apud CATTANI, 2009)
[7] Aqui há uma indicação da discussão de Maria das Graça Rua e Miriam Abramovay (2000) sobre as relações de gênero nos assentamentos rurais: mesmo sob a bandeira da justiça e do combate ao sistema econômico vigente, o acesso à titularidade e posse da terra, a não-violência nos relacionamentos amorosos e familiares, a divisão das tarefas domésticas e condições de vida reprodutiva das mulheres que também estão na luta pela terra ainda encontra barreiras concretas de segregação, desigualdade e violência. A partir deste quadro, Rua e Abramovay (2000) perguntam: são mesmo companheiras de luta ou somente coordenadoras de panelas?
[8] O campo (o meio rural como o conhecemos atualmente) foi submetido a uma grande mecanização e a um novo modelo que associa a terra a um valor comercial e produtivo. A consolidação dessa nova visão, impulsionada pela revolução verde dos anos de 1960, usou e disseminou um pacote tecnológico em busca do aumento da produção em prol da demanda do mercado. E, inevitavelmente, um dos desdobramentos desse processo foi a pauperização e marginalização de parcela significativa do meio rural, sobretudo das mulheres camponesas vistas como apêndices da vida familiar e agrária.
[9] As inovações tecnológicas na agricultura para a obtenção de maior produtividade através do desenvolvimento de pesquisas em sementes, fertilização do solo, utilização de agrotóxicos e mecanização no campo que aumentassem a produtividade, ficou denominada de Revolução Verde. Esse processo ocorreu através do desenvolvimento de sementes adequadas para tipos específicos de solos e climas, adaptação do solo para o plantio e desenvolvimento de máquinas. A implantação de novas técnicas agrícolas iniciou-se no fim da década de 1940, porém os resultados expressivos foram obtidos durante as décadas de 1960 e 1970, onde países em desenvolvimento aumentaram significativamente sua produção agrícola. A expressão Revolução Verde foi criada em 1966, em uma conferência em Washington, por William Gown, que disse a um pequeno grupo de pessoas interessadas no desenvolvimento dos países com déficit de alimentos “é a Revolução Verde, feita à base de tecnologia, e não do sofrimento do povo”. Esse programa foi financiado pelo grupo Rockefeller, sediado em Nova Iorque. Utilizando um discurso ideológico de aumentar a produção de alimentos para acabar com a fome no mundo, o grupo Rockefeller expandiu seu mercado consumidor, fortalecendo a corporação com vendas de pacotes de insumos agrícolas, principalmente para países em desenvolvimento como Índia, Brasil e México. O grupo patrocinou projetos em determinados países criteriosamente selecionados, as nações escolhidas foram: México, Filipinas, Estados Unidos, e, em menores proporções, o Brasil (CAPORAL, 2002).
[10]O sujeito de direito é aquele a quem a lei – em sentido amplo – atribui direitos e obrigações, aquele cujo comportamento se pretende regular (CANTISANO, 2010).
[11]A inovação metodológica proposta pelos estudos agroecológicos é a junção harmônica de conceitos das ciências naturais e conceitos das ciências sociais, o que nos leva a um patamar mais amplo de percepção dessa ciência. Tal junção permite o entendimento acerca da agroecologia como ciência, como movimento e como prática dedicada ao estudo das relações produtivas entre homem-natureza, visando sempre a sustentabilidade ecológica, econômica, social, cultural, política e ética. O resgate de saberes de comunidades indígenas e camponesas tradicionais se liga ao saber acadêmico-científico, buscando-se a cooperação e a unidade desses diferentes saberes na construção da agroecologia. A abordagem agroecológica propõe mudanças profundas nos sistemas e nas formas de produção. Na base dessa mudança está a filosofia de se produzir de acordo com as leis e as dinâmicas que regem os ecossistemas – uma produção com (e não contra) a natureza. Propõe, portanto, novas formas de apropriação dos recursos naturais que devem se materializar em estratégias e tecnologias condizentes com a filosofia-base. Em sentido mais estrito, a agroecologia pode ser vista como uma abordagem da agricultura que se baseia nas dinâmicas da natureza, dentre as quais se destaca a sucessão natural, que permite a recuperação da fertilidade do solo, sem o uso de fertilizantes minerais, e o cultivo sem o uso de agrotóxicos. Basicamente, a proposta agroecológica para sistemas de produção agropecuária faz direta contraposição ao agronegócio, por condenar a produção centrada na monocultura, na dependência de insumos químicos e na alta mecanização, além da concentração da propriedade de terras produtivas, a exploração do trabalhador rural e o consumo não local da produção. As práticas agroecológicas podem ser vistas como práticas de resistência da agricultura familiar, perante o processo de exclusão no meio rural e de homogeneização das paisagens de cultivo. Essas práticas se baseiam na pequena propriedade, na força de trabalho familiar, em sistemas produtivos complexos e diversos, adaptados às condições locais e ligados a redes regionais de produção e distribuição de alimentos (CAPORAL, 2002; 2009; GUTERRES, 2006).
[12] PRONAF (Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar) que financia projetos individuais ou coletivos, que subsidia financeiramente os agricultores familiares e assentados da reforma agrária. O programa detém as mais atrativas taxas de juros do mercado, o que facilita as negociações e associações dos financiamentos rurais e com isso tenta combater as taxas de inadimplência. A associação ao PRONAF é decidida em família e deve vir de encontro às necessidades de investimento da unidade familiar. Dentro deste programa, há o PRONAF – Mulher que é uma linha de crédito do Pronaf já consolidado, direcionado às práticas laborais das mulheres de um núcleo familiar já credenciado. O PRONAF – Mulher inicia um processo de reconhecimento da condição das mulheres enquanto trabalhadoras em situações de independência, retirando-as do modelo familiar (e que ainda existe) que, historicamente as manteve assentadas numa lógica na qual não existiam, senão como membros de agrupamentos familiares patriarcais. Nesse modelo, o homem aparecia como trabalhador efetivo, responsável pela contratação e execução dos trabalhos, mesmo que para isso fizesse uso da força dos trabalhos da mulher e dos filhos/as, numa relação de poder que impedia que estas fossem projetadas na condição de sujeitos atuantes (MENEGAT, 2010).
[13] Para Raffestin (1993: 50) as bases para a compreensão do território como uma relação do homem com espaço, estão no poder: é essencial compreender bem que o espaço é anterior ao território. O território se forma a partir do espaço, é o resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível. Ao se apropriar de um espaço, concreta ou abstratamente (por exemplo, pela representação), o ator “territorializa” o espaço. Sendo assim, o território (…) é um espaço onde se projetou um trabalho, seja energia e informação, e que, por consequência, revela relações marcadas pelo poder. O espaço é a “prisão original”, o território é a prisão que os homens constroem para si (RAFFESTIN, 1993: 50). Ou seja, as pretensões do autor em relação ao território vão para além da visão biológica da expressão, sendo o conceito mediado por uma relação de poder que modifica o espaço (no campo imaterial), já que “o território se apoia no espaço, mas não é o espaço. É uma produção, a partir do espaço. Ora, a produção, por causa de todas as relações que envolve, se inscreve num campo de poder” (RAFFESTIN, 1993:51). Assim como a perspectiva de lugar, o território é repleto de subjetividades, simbolismos e culturas. Ou ainda, o território ganha o simbolismo a partir de seu uso, o “território usado” nas palavras de Milton Santos (1994), ou “território do cotidiano” (JÚNIOR, 2003) Para Haesbaert (2001), o território traz consigo a dimensão tanto do simbólico, quanto do material. Desde a origem, o território nasce com uma dupla conotação, material e simbólica, pois etimologicamente aparece tão próximo de terra-territorium quanto de terreo-territor (terror, aterrorizar), ou seja, tem a ver com dominação (jurídico-política) da terra e com a inspiração do terror, do medo – especialmente para aqueles que, com esta dominação, ficam alijados da terra, ou no “territorium” são impedidos de entrar. Ao mesmo tempo, por extensão, podemos dizer que, para aqueles que têm o privilégio de usufruí-lo, o território inspira a identificação (positiva) e a efetiva “apropriação” (HAESBAERT, 2001: 6774)
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